quarta-feira, 30 de novembro de 2011

''O solo das milícias é a generalizada corrupção na polícia fluminense''. Entrevista especial com Michel Misse


“Dificilmente acabará o tráfico propriamente dito, que encontrará modos mais discretos de chegar aos fregueses, como já vem ocorrendo em outras Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs”, avalia Michel Misse, ao comentar aocupação da favela da Rocinha. Apesar de analisar os limites das UPPs nas favelas cariocas, o sociólogo diz que o “controle armado do tráfico acaba, o que permitirá avanços no associativismo livre local e a instalação emmédio prazo de uma polícia comunitária”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Misse também analisa a atuação da mídia. Para ele, a cobertura televisiva da ocupação da Rocinha é “chapa-branca”, e “praticamente não se distingue mais do Estado”. E ressalta: “O apoio à atual política das UPPs não deve se transformar em ufanismo televisivo, destruindo a imparcialidade e a capacidade crítica que se espera do bom jornalismo”.

Michel Misse é graduado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre e doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ/SBI/UCAM. Atualmente é professor associado do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, onde integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Percebe algum avanço em relação à ocupação da Rocinha, comparando com a ocupação do Complexo do Alemão no ano passado?

Michel Misse – O principal avanço foi o trabalho de inteligência da polícia que permitiu a prisão dos principais chefes sem um único tiro.

IHU On-Line – O que deve mudar na Rocinha com a instalação das UPPs?

Michel Misse – O fim do controle armado por parte dos traficantes. Dificilmente acabará o tráfico propriamente dito, que encontrará modos mais discretos de chegar aos fregueses, como já vem ocorrendo em outras UPPs. Mas ocontrole armado do tráfico acaba, o que permitirá avanços no associativismo livre local e a instalação em médio prazo de uma polícia comunitária. Esse é o plano; todos esperamos que se realize.

IHU On-Line – Qual é o efeito das UPPs nas favelas cariocas?

Michel Misse – O sentimento de insegurança diminuiu na cidade; isso está visível nas áreas turísticas e nos bairros de classe média da zona sul e zona norte. Mas o tráfico armado ou as milícias parapoliciais continuam atuando na maioria das favelas da cidade e em todas as favelas da região metropolitana (baixada fluminense e região serrana, além de Niterói). São mais de 200 as favelas que se sabe que estão sob controle ou do tráfico ou de milícias. É um grande desafio, que se acumulou ao longo dos últimos 30 anos.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a prisão do traficante Nem e o espetáculo que a mídia tem feito em torno da ocupação das favelas do Rio de Janeiro?

Michel Misse – É vergonhosa a atuação da mídia chapa-branca, que praticamente não se distingue mais do Estado. O apoio à atual política das UPPs não deve se transformar emufanismo televisivo, destruindo a imparcialidade e a capacidade crítica que se espera do bom jornalismo. Infelizmente a grande imprensa brasileira não anda nada bem nesse quesito.

IHU On-Line – Por que o poder econômico do tráfico no Rio de Janeiro está em declínio? Essa situação se deve a proliferação das milícias nas favelas do Rio de Janeiro?

Michel Misse – As milícias avançaram com o declínio do tráfico. Quando me refiro ao declínio, estou apenas constatando, por comparação com o período 1987-2001. São muitos os fatores, inclusive as lutas entre as facções e as lutas internas às próprias facções, além da política de confronto e extermínio, que matou mais de 10 mil civis suspeitos nos últimos oito anos no estado do Rio de Janeiro. É quase o mesmo número de presos por tráfico. As UPPs se tornaram possíveis também por esse declínio.

IHU On-Line – Além da perda de território dos traficantes, quais são as outras razões que têm facilitado a introdução das milícias no Rio?

Michel Misse – O solo das milícias é a generalizada corrupção na polícia fluminense. Quando a extorsão começou a cair, em algumas áreas, em função do declínio do tráfico a varejo, os policiais corruptos, aliados a outros cúmplices do serviço público, resolveram juntar ao extermínio dos traficantes a extorsão dos moradores, sob o pretexto de proteção. Aproveitaram também e passaram a comercializar bens ilegais (exceto drogas) antes controlados pelos traficantes (transporte ilegal, distribuição de gás em butijão, gatonet, etc.).

IHU On-Line – Por que o Estado não consegue combater as milícias?

Michel Misse – Houve a CPI estadual, comandada pelo corajoso deputado Marcelo Freixo (hoje ameaçado de morte) e houve repressão a uma das principais redes de milícias, a chamada Liga da Justiça, cujos chefes estão presos. Há uma UPP numa das favelas controladas por milícias na zona oeste, mas é preciso muito mais – como já disse, o desafio é grande e há resistências. O assassinato da juíza Patricia Amorim, de São Gonçalo, deve-se ao fato de que ela estava endurecendo com as milícias da região.

IHU On-Line – Quais são, hoje, as principais razões da violência e dos conflitos urbanos no Rio de Janeiro?

Michel Misse – São muitas as formas da violência. A mais visível e temível é a violência armada, geralmente baseada em mercados ilegais – drogas, armas, mercadorias ilegais, etc.

IHU On-Line – Quais são os principais limites da atual segurança pública no Rio de Janeiro?

Michel Misse – O orçamento do Estado e os interesses políticos. Como em qualquer outro lugar...

IHU On-Line – Quais serão os desafios das UPPs na Rocinha e no Vidigal?

Michel Misse – A continuidade, o apoio dos moradores e, principalmente, os policiais não cederem à lógica da corrupção, não entrarem no troca-troca de mercadorias políticas.

IHU On-Line – Como vê a saída de Marcelo Freixo do Brasil por causa de ameaças de morte?

Michel Misse – Freixo saiu taticamente, o que foi correto, atendendo a convites para conferências na Europa. Deverá se candidatar à prefeitura por seu partido, o Psol. Freixo, como eu, apoia (sem perder a visão crítica) a política das UPPs em lugar das anteriores políticas de confronto e extermínio. Os criminosos devem ser presos e condenados, jamais mortos.

IHU On-Line – Em que consistiria uma política de segurança pública eficaz no Rio de Janeiro?

Michel Misse – Aquela que garantir níveis normais de criminalidade e violência, normais no sentido de estatisticamente comparáveis a cidades semelhantes de outras partes do mundo civilizado.

De volta a 1937


"Um medo indefinido, um calado desespero, uma angústia do futuro começam a se infiltrar nas almas humildes das vítimas inocentes da cobiça dos fundamentalistas do mercado", escreve Rubens Ricupero, ex-secretário geral da Unctad, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 28-11-2011. Segundo ele, "a lição desse tempo distante é clara. Os ganhos com commodities, mesmo o sonho-pesadelo do petróleo, não podem nos distrair do desafio essencial". Eis o artigo. O desafortunado 2011 ficará na história como a repetição de 1937. Esse ano foi importante para muita gente, a começar por mim, que nele vim ao mundo. Para o mundo, marcou a recaída da recessão americana no momento em que se parecia estar saindo da Grande Depressão. A partir de meados de 1937, a produção manufatureira despencou 37%. O desemprego saltou de 14% a 19%, embora sem chegar aos 25% de 1933. Só ao entrar na guerra, em 1941/42, os EUArecuperariam o nível de emprego. Tal qual naquela época, a crise atual se assemelha a uma montanha-russa pontuada de altos e baixos que alternam confiança e desespero. É o que estamos vendo desde o agravamento do problema da Europa e da paralisia política junto à estagnação econômica nos EUA. Para os americanos, o quadro político é hoje pior: radical polarização da sociedade e dos partidos, presidente que não passa de pálida figura comparado à personalidade de irradiante autoconfiança deFranklin D. Roosevelt. No caso dos europeus, a semelhança se resume à modéstia dos talentos de Merkel, Sarkozy eCameron, mais ou menos do mesmo nível deChamberlain e Daladier. A irredutível diferença é que 1937/38 foram os anos do Grande Terror em que Stálin assassinou 682 mil pessoas, da Noite de Cristal de Hitler antecipando o holocausto de 5,7 milhões de judeus, da inexorável marcha rumo à Segunda Guerra Mundial, durante a qual pereceram mais de 60 milhões de pessoas. Felizmente, estamos longe desses extremos da ignomínia e da infâmia. Nada na reação dos indignados e de movimentos como o "Ocupe Wall Street", na perda de legitimidade e queda de governo após governo na Europa autoriza comparações com a sinistra ascensão do nazifascismo na década de 1930. No entanto, um medo indefinido, um calado desespero, uma angústia do futuro começam a se infiltrar nas almas humildes das vítimas inocentes da cobiça dos fundamentalistas do mercado. No Brasil, o período que evocamos foi de luzes e sombras. No passivo houve o levante dos comunistas, o ataque dos integralistas ao Catete, a implantação do Estado Novo, a moratória da dívida, a crueldade dos crimes da repressão descritos por Graciliano Ramos em "Memórias do Cárcere", esquecidos pelos admiradores do risonho Vargas da propaganda oficial. Na economia, não existia para compensar a crise mundial algo parecido com a China de agora, aliás brutalmente agredida em 1937 pelo Japão. Apesar disso, a penúria de divisas por causa da moratória e a industrialização forçada da guerra neutralizaram os efeitos de fora. O crescimento alimentava o debate da questão nacional, a esperança de que a indústria, defendida por Simonsen, permitisse superar a estrutura colonial, a vocação agrícola advogada por Gudin. A lição desse tempo distante é clara. Os ganhos com commodities, mesmo o sonho-pesadelo do petróleo, não podem nos distrair do desafio essencial. A crise deve servir para retomar a preocupação com avanços reais de produtividade, competitividade e eficiência, com reformas que façam do Brasil uma nação verdadeiramente moderna e equitativa.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Capitalismo vs. democracia

Governos eleitos desbancados na Grécia, Itália, Espanha... É como se os mercados da Europa se cansassem dessa bobagem de soberania democrática, escreve Harold Meyerso, colunista americano, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 27-11-2011.

Eis o artigo.

Capitalismo conflita com democracia? Um enfraquece o outro?

Para ouvidos americanos, essas questões parecem bizarras. Capitalismo e democracia estão ligados como gêmeos siameses, não? Esse foi nosso mantra durante a Guerra Fria, quando era nitidamente claro que comunismo e democracia eram incompatíveis. Mas depois que a Guerra Fria terminou as coisas ficaram mais confusas. Não custa lembrar que virtualmente cada executivo de empresa americano e cada presidente americano (dois Bushes e um Clinton, em particular) nos disseram que levar o capitalismo à China democratizaria a China.

Não foi bem assim.

No ano passado, de fato, o capitalismo atropelou completamente a democracia. Em nenhum lugar isso é tão visível como na Europa, onde instituições financeiras e grandes investidores foram à guerra sob a bandeira da austeridade e governos de países com economias não muito produtivas ou sobrecarregadas descobriram que poderiam não satisfazer às exigências e continuar no poder.

Os governos eleitos da Grécia e Itália foram depostos. Tecnocratas financeiros estão no comando nos dois país. Com as taxas de juros dos bônus espanhóis subindo acentuadamente nas últimas semanas, o governo socialista da Espanha foi desbancado por um partido de centro-direita que não ofereceu soluções para a crise crescente desse país. Agora, o governo de Nicolas Sarkozy, na França está ameaçado pelas taxas de juros crescentes sobre seus bônus. É como se os mercados por toda a Europa tivessem se cansado dessa bobagem de soberania democrática.

Para ninguém achar que exagero, considere-se a entrevista concedida por Alex Stubb, ministro da Europa para o governo de direita da Finlândia, ao jornal Financial Times no último fim de semana. Os 6 países da zona do euro com classificações de crédito AAA, disse Stubb, deveriam ter maior influência nos assuntos econômicos da Europa que os outros 11 membros do euro. Os direitos políticos da Europa Central e do Sul seriam subordinados, basicamente, aos da Alemanha e da Escandinávia - ou às agências de classificação de crédito, que estão ameaçando rebaixar a França (reduzindo, com isso, de seis para cinco o número de países do euro tomadores de decisões).

O que Stubb está propondo, e os mercados estão fazendo, é, em essência, estender ao reino de países antes igualmente soberanos o princípio de "um dólar um voto" que nossa Suprema Corte inscreveu em sua decisão Citizens United no passado. O requisito de que se deve possuir propriedade para votar - abolido neste país no início do século XIX pelos democratas jacksonianos - foi ressuscitado por poderosas instituições financeiras e seus aliados políticos. Para os países da união monetária europeia, a "propriedade" de que precisam para garantir seu direito de voto é uma classificação de crédito apropriada.

Isso tudo parece muito estranho, porém. A ideia de que há um conflito entre nossos sistemas econômico e político é difícil de aceitar, e não somente nos Estados Unidos. Também na Europa tem-se assumido que democracia e capitalismo (ao menos, o capitalismo social europeu) andam juntos. Isso em grande parte porque ambos os sistemas prosperaram em aparente harmonia nas três décadas seguintes ao fim da 2ª Guerra Mundial. Os lucros cresciam enquanto salários cresciam e benefícios sociais se ampliavam. Mas, e se essa paz de 30 anos foi a exceção no estado mais comum de conflito entre os mercados e os povos?

Esse é a posição defendida por Wolfgang Streeck, diretor-gerente do Instituto Max Plank para o Estudo de Sociedades, no número de setembro/outubro daNew Left Review. Streeck afirma que, desde meados dos anos 70, governos tiveram que sobrecarregar seus recursos e atribuições para atender às demandas conflitantes de cada sistema. Nos 70, alguns governos seguiram políticas inflacionárias para ajudar trabalhadores cujos salários haviam parado abruptamente de crescer.

Nos 80, alguns governos, liderados por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, inclinaram-se para outro caminho, aumentando as taxas de juro e o desemprego e ajudando a quebrar sindicatos. Nos anos 90, um acordo fatal foi firmado: para compensar as rendas estagnadas, o endividamento privado disparou e proprietários de casa e consumidores recorreram ao crédito fornecido por instituições financeiras desreguladas. A dívida pública contraiu (os Estados Unidos tiveram orçamentos equilibrados no fim dos anos 90). Na esteira do colapso de 2008, essa dinâmica foi invertida: governos por toda parte assumiram o endividamento que seus cidadãos não poderiam mais suportar, mediante gastos deficitários para contra-atacar a Grande Recessão.

Agora, os mercados estão contra-atacando.Napoleão não conseguiu conquistar toda a Europa, mas a Standard & Poor's talvez ainda o consiga. Conflitos entre capitalismo e democracia estão eclodindo por toda parte. E os europeus - e mesmo os americanos - poderão ter de enfrentar, em breve, uma questão que não consideraram por muitíssimo tempo, se é que algum dia consideraram: de que lado eles estão?

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Durante séculos, temos educado os fiéis para a submissão e a obediência

A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 13, 33-37, que corresponde ao 1º Domingo do Tempo de Advento, ciclo B do Ano Litúrgico.

O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.

A CASA DE JESUS

Jesus está em Jerusalém, sentado no monte das Oliveiras, olhando para o Templo e conversando confidencialmente com quatro discípulos: Pedro, Santiago, João e André. Vê-os preocupados por saber quando chegará o final dos tempos. A Ele, pelo contrário, preocupa-O como viverão os Seus seguidores quando já não O tenham entre eles.
Por isso uma vez lhes apresenta a Sua inquietação:“Olhai, vivei despertos”. Depois, deixando de lado a linguagem terrorífica dos visionários apocalípticos, conta-lhes uma pequena parábola que passou quase desapercebida entre os cristãos.

Um senhor foi de viajem e deixou a sua casa”.Mas, antes de se ausentar, “confiou a cada um dos seus criados a sua tarefa”. Ao despedir-se, só lhes insistiu numa coisa: “Vigiai, pois não sabeis quando virá o dono da casa”. Que, quando venha, não vos encontre adormecidos.

O relato sugere que os seguidores de Jesus formarão uma família. A Igreja será “a casa de Jesus” que substituirá “a casa de Israel”. Nela todos são servidores. Não há senhores. Todos viverão à espera do único Senhor da casa: Jesus Cristo. Não o esquecerão jamais.

Na casa de Jesus ninguém deve permanecer passivo. Ninguém tem de se sentir excluído, sem responsabilidade alguma. Todos são necessários. Todos têm alguma missão confiada por Ele. Todos estão chamados a contribuir para a grande tarefa de viver como Jesus, sempre dedicado a servir o reino de Deus.

Os anos vão passando. Será que se manterá vivo o espírito de Jesus entre os Seus? Continuarão a recordar o seu estilo de Serviço aos mais necessitados e desvalidos? Irão segui-lo pelo caminho aberto por Ele? Sua grande preocupação é que a Sua Igreja é que venha a adormecer. Por isso insiste até três vezes: “Vivei despertos”. Não é uma recomendação aos quatro discípulos que o estão a escutar, mas sim um mandato aos crentes de todos os tempos: “O que vos digo, digo a todos: velai”.

O traço mais generalizado dos cristãos que não abandonaram a Igreja é seguramente a passividade. Durante séculos, temos educado os fiéis para a submissão e obediência. Na casa de Jesus só uma minoria se sente hoje com alguma responsabilidade eclesial.

Chegou o momento de reagir. Não podemos continuar aumentando mais ainda a distância entre “os que mandam” e “os que obedecem”.É pecado promover o desafeto, a mútua exclusão ou a passividade. Jesus queria ver-nos a todos despertos, ativos, colaborando com lucidez e responsabilidade.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Guerrilha ''proíbe'' uso de agrotóxicos no Paraguai


O grupo guerrilheiro Exército do Povo Paraguaio (EPP) emitiu um comunicado ameaçando produtores de soja que utilizam pesticidas em seus cultivos. A guerrilha deixou na noite de anteontem um manifesto na rádio Ñandutí, de Assunção.

A reportagem é de Fabio Murakawa e publicada pelo jornal Valor, 23-11-2011.

"Fica terminantemente proibida a fumigação e o envenenamento dos grandes cultivos de soja, que estão afetando a saúde de comunidades vizinhas", dizia o texto, advertindo os "grandes agroexportadores" que abandonassem a prática. "Se persistirem na destruição do meio ambiente, adoentando os nossos irmãos camponeses, seremos implacáveis com vocês."

O EPP é uma guerrilha marxista que opera sobretudo nos Departamentos (Estados) de San Pedro e Concepción, no norte do Paraguai, onde vigora um estado de sítio imposto pelo governo. São um grupo relativamente pequeno, estimado em não mais do que 40 pessoas, mas cuja atuação vem assustando empresários e membros do governo paraguaio.

As ações do EPP, que pratica sequestros há mais de uma década, já afetam negócios no país, mexendo inclusive com os interesses de sojicultores brasileiros radicados no Paraguai. "Tenho uma guarda privada para proteger a minha casa, e meu escritório em Assunção está há mais de um ano sob a proteção de policiais", disse o empresário Tranquilo Favero. Há 42 anos no país vizinho, ele é o maior produtor individual de soja do Paraguai. Ele conta que pediu proteção ao governo depois que seu nome foi achado em listas de possíveis candidatos a sequestro encontradas pela polícia em esconderijos da guerrilha.

Favero teme ter o mesmo fim de Fidel Zavala, um importante pecuarista paraguaio sequestrado dois anos atrás pelo EPP. A guerrilha forçou sua família a distribuir carne gratuitamente a famílias de baixa renda, dizendo aos "beneficiários" ser uma "cortesia do EPP". Zavalapermaneceu três meses em cativeiro e só foi libertado após o pagamento de um resgate estimado em US$ 550 mil. Um ano antes, outro fazendeiro, Luis Lindstrom, foi libertado após o pagamento de US$ 300 mil ao grupo. Zavala disse a policiais que os guerrilheiros estavam armados com fuzis M16, pistolas e granadas.

Há também no histórico do EPP vários enfrentamentos com as forças de segurança. No final de setembro, um grupo de dez homens matou dois policiais em um ataque com explosivos na cidade de Capitán Gimenez, em Concepción. A insegurança na área de atuação do EPP mexe também com os planos de investimento das cooperativas brasileiras instaladas no Paraguai. "Nós fomos à região para ver se nos encorajávamos a comprar algumas terras por lá. Por enquanto, não temos a intenção de investir naquela área", disse Ovídio Zanquet, gerente-geral da cooperativa paranaense Lar no Paraguai. "As terras por lá são boas, a região tem futuro. Além disso, em zonas de conflito, os preços ficam mais baratos. Mas, por enquanto, não dá para investir."

Apesar de a guerrilha se autodenominar ideológica, na opinião do brasileiro Favero a verdadeira área de atuação do grupo é o narcotráfico. "Eles não querem que o progresso chegue à região", afirmou. "Onde há soja, abrem-se estradas, a infraestrutura melhora, e diminui o espaço para plantar maconha."

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Milícias são o próximo desafio do Rio de Janeiro

A tomada das favelas da Rocinha, Chácara do Céu eVidigal pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope), liberando do controle do narcotráfico armado quase 100 mil moradores e a preparação para nelas se instalar a 19ªUnidade de Polícia Pacificadora (UPP), completa a expulsão do poder paralelo das favelas localizadas na zona sul do Rio de Janeiro, a região mais rica da cidade, e reacende o debate sobre o alcance da, até agora inegavelmente bem-sucedida política de segurança fluminense. Um tema em especial, o futuro do combate às milícias, poder armado controlado por militares e ex-militares que domina grande parte do lado pobre da zona Oeste, preocupa a população e os analistas.

A reportagem é de Chico Santos e Paola de Moura e publicada pelo jornal Valor, 22-11-2011.

"Qual a finalidade da UPP? Ela não veio, como diz o próprio (secretário de segurança José Mariano) Beltrame, para acabar com o tráfico de drogas. Ela tem um sentido: acabar com o controle armado, paralelo, de territórios. E a milícia é isso (controle armado). Então tem alguma coisa que não bate", questiona a socióloga Julita Lemgruber, primeira mulher a dirigir o sistema prisional do Estado do Rio de Janeiro (1991-1994) e uma das maiores autoridades do país no assunto segurança pública.

O questionamento é a propósito do discurso oficial que, mesmo sem excluir a presença de UPPs nas áreas dominadas por milicianos, diz que o ataque às milícias exige uma estratégia mais calcada em trabalho de inteligência, diferente daquela que vem sendo aplicada pelas UPPs, a ocupação ostensiva dos territórios. Para a Secretaria de Segurança Pública, as milícias já estão sendo combatidas.

A prova do sucesso, mesmo admitindo que o trabalho está apenas no começo, seria a estatística de 624 milicianos presos desde 2006, sendo sete vereadores, um deputado estadual, 142 policiais militares (PMs), 32 ex-PMs e 14 policiais civis. As estatísticas da Secretaria de Segurança mostram ainda que o auge das prisões de milicianos ocorreu em 2009, com um total de 250, e que este ano foram presos até agora 124.


Por intermédio de sua assessoria o secretário Beltrame, disse que "milícia e tráfico são diferentes e, portanto, precisam de tratamentos distintos". Ele completa: "A política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro contempla ambos. Temos 19 UPPs que trouxeram a cidadania de volta para mais de 1 milhão de pessoas, direta e indiretamente. Até 2014 serão 40 UPPs espalhadas pelo Estado. No combate às milícias, é importante destacar que já foram presos mais de 600 bandidos."

Beltrame considera que "o combate às milícias exige uma ação de inteligência e, por isso, é mais demorado". Ele ressalta que já existe uma UPP em área que foi controlada por milícia, a favela do Batam (Bangu, zona oeste). "O nosso planejamento prevê a chegada de UPPs à zona Oeste, onde esse problema ainda existe. Mas como digo, UPP não se anuncia, se faz."

O discurso e a ação oficial até agora estão em xeque: "Tenho dúvidas sobre se só prendendo milicianos você vai acabar com as milícias", diz o sociólogo Ignacio Cano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), outro reconhecido especialista no tema segurança.Cano argumenta que a favela do Batam, em Bangu (Zona Oeste), segunda a receber uma UPP, é a prova de que a estratégia usada no combate ao tráfico armado é também capaz de obter sucesso no combate às milícias.

"Sem a presença ostensiva do Estado vai ser difícil acabar com as milícias", diz Cano que, da mesma forma queJulita, reconhece que as milícias têm características diferentes do narcotráfico armado. Uma delas é que não costuma haver tiroteios nas comunidades dominadas pelos milicianos, "até porque a polícia não vai lá enfrentá-los", ressalta Cano.

As milícias atuam principalmente na zona oeste da capital e nas cidades da Baixada Fluminense, um cinturão de pobreza há várias décadas marcado por lideranças violentas, geralmente a pretexto de eliminar bandidos (grupos de extermínio), uma linhagem que tem como símbolo o alagoano Tenório Cavalcanti, líder no município de Duque de Caxias que chegou a deputado federal.

Para Cano, as UPPs, que trafegaram pela trilha dos bairros turísticos (zona sul), daqueles associados a áreas de grandes eventos, como Tijuca e Mangueira (zona norte), vizinhos ao estádio do Maracanã, e que deverão chegar brevemente à favela da Maré (zona norte), encravada na rota do aeroporto internacional do Galeão, deveriam a partir de agora obedecer às estatísticas de violência como principal determinante para futuras instalações. Por esse critério, ele avalia que a Baixada e a zona Oeste passariam a ser contempladas também.

Cano e Julita reconhecem que a política de UPPs é positiva e que representa uma nova forma de combater o poder paralelo armado, substituindo o clima de guerra sem resultados práticos que antes predominava e levando aos moradores das comunidades pobres o gosto de viver em paz. "Já entrevistei pessoas que disseram que agora seus filhos podem ir à escola sem risco", ressalta a socióloga. Ficam as dúvidas quanto aos limites materiais do Estado para prosseguir com essa política e a cobrança de ações que vão além da pura e simples pacificação.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

UPPs serão inúteis sem reforma da segurança pública

A situação dos direitos humanos no Brasil melhorou, mas ainda deixa a desejar, como mostra o deficit de segurança pública no país.

O diagnóstico é do militante e cientista político Atila Roque, chefe do novo escritório da Anistia Internacionalno Brasil. A representação de uma das principais organizações de defesa dos direitos humanos no mundo está sendo reaberta no país após dez anos de ausência.

Desta vez, o escritório da Anistia ficará no Rio de Janeiro e funcionará a partir de dezembro com uma equipe de ao menos 12 funcionários, a maioria brasileiros.

Em entrevista à Folha, por telefone desde Brasília, onde ainda mora antes de se mudar para o Rio, Roque elogiou as operações policiais que varreram o narcotráfico em algumas favelas do Rio, mas alertou que o esforço será inócuo sem uma transformação radical dos métodos e cultura das autoridades de segurança pública.

Roque elogiou a recém-sancionada Comissão da Verdadee criticou a desocupação da reitoria da USP.

A entrevista é de Samy Adghirni e publicada pelo jornalFolha de S. Paulo, 21-11-2011.

Eis a entrevista.

Por que a Anistia está voltando ao Brasil?

Ainda que tenha obtido avanços importantes nos últimos 20 anos em direitos humanos e na área social, de combate à pobreza, o Brasil ainda tem um deficit de direitos gigantesco. Basta ver a segurança pública e o altíssimo número de homicídios.

Por outro lado, o Brasil reivindica um novo protagonismo na esfera internacional. O país é um dos principais atores do G20, quer assento no Conselho de Segurança da ONU e é membro dos BRICS [grupo que reúne também Rússia, Índia, China e África do Sul]. Mas isso vem acompanhado de uma maior responsabilidade na defesa dos direitos. Não pode haver omissão ou neutralidade que, na prática, penalizam quem está oprimido.

Diante dos contextos interno e externo, acho até que a Anistia demorou a recompor uma presença forte e de longo prazo no Brasil.

Por que a Anistia escolheu o Rio para sua sede brasileira?

Primeiro, porque o Rio está no centro do debate sobre a segurança pública, que tem implicações para o Brasil inteiro. O que acontece no Rio pode e deve servir de exemplo para pensar todo o tema da segurança pública do país.

Outra razão diz respeito à nova agenda de reforma urbana e desenvolvimento, que vem a reboque da Copa do Mundo e da Olimpíada e sugere repensar o espaço urbano como lugar de inclusão, e não de exclusão.

Como vê as recentes operações da polícia do Rio nos morros ocupados pelo tráfico?

O modelo UPP [Unidade de Polícia Pacificadora], que consiste em trazer para as favelas uma presença de segurança pública focada na reconquista do território, na retirada das armas e numa perspectiva de integração com outras ações de governo [sociais, culturais e econômicas], é uma inovação que precisa ser reconhecida.

O morador da favela tem o mesmo direito à segurança que o de Ipanema ou dos Jardins. A principal vítima do crime violento no Brasil é o morador da periferia, que tradicionalmente foi objeto de ação meramente repressiva. Mas todas essas iniciativas serão inúteis se não forem acompanhadas de um esforço mais amplo.

O que precisa ser feito?

O primeiro passo é fazer com que os diferentes subsistemas adotem um patamar comum de informação, gestão e integração, baseado na inteligência, qualificação do profissional e respeito aos direitos. É preciso romper com a cultura de subsistemas isolados e controlados a partir dos Estados.

Por mais virtuoso que seja algum modelo localizado, ele não pode avançar sem respaldo dentro do sistema de segurança como um todo.

A segurança pública no Brasil ainda sofre de distorções decorrentes de anos de autoritarismo e de baixíssimo nível de integração entre unidades federativas e União. Faltam instrumentos de informação e não há possibilidade de acessar dados on-line de crimes no Brasil.

É preciso ainda uma política que premie o agente que faz bem seu trabalho e puna rigorosamente aquele que rompe com a legalidade. E é fundamental a ênfase no diagnóstico, se não a gente não sabe onde investe nem como fazer política pública.

A agenda dos sonhos seria tratar a segurança de forma integral, não apenas como uma resposta a uma situação de emergência como a que encontramos em algumas favelas ocupadas pelo tráfico.

Remodelar a gestão é suficiente para reduzir a violência?

Claro que sim. O Brasil perde quase 50 mil vidas por ano em mortes violentas. Essas vítimas são, em sua maioria, jovens pobres entre 16 e 24 anos. Uma reflexão sobre o sistema de Justiça vai orientar a atividade repressiva para onde mais importa.

O assassinato é hoje um crime praticamente impune no Brasil porque a polícia não tem capacidade de investigação e só leva a processo o homicídio que tem testemunha imediata. O número de homicídios solucionados no Brasil é baixíssimo.

O país prende majoritariamente o jovem que comete crime não violento, enquanto quem comete crime violento não está sendo preso. O menino de 16 anos que cometeu um crime leve não precisa ser jogado a uma situação de perda de liberdade.

O que responde aos que acusam os defensores dos direitos humanos de proteger bandidos?

É preciso um esforço para se construir uma cultura de direito e uma percepção de valores fundamentais para a vida em sociedade. Entender que não há direitos para uns e direitos para outros reflete o grau civilizacional de uma sociedade.

No passado era muito mais forte a ideia de que direitos humanos eram defesa de bandido. Felizmente e gradualmente isso está mudando. Cada vez mais compreende-se que o Estado não pode, em nome do controle do crime, violar o direito das pessoas.

Mas é preciso continuar a desconstruir os estereótipos, para eliminar aquele medo irracional que gera insensibilidade e nos leva a ter medo da criança que está na rua.

Legalizar as drogas ajudaria a reduzir a violência?

Algum patamar de descriminalização e legalização de substâncias seria importante de alcançar. Hoje dedica-se um esforço brutal do aparelho do Estado para reprimir o pequeno consumidor e criminalizá-lo da mesma maneira que o grande traficante.

Atualmente qual é a maior ameaça à segurança pública?

É o avanço crescente da criminalidade organizada a partir do próprio aparato de segurança pública, que acabou de matar a juíza Patrícia Acioli e ameaça o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ).

Se não houver uma atuação organizada contra as milícias, daqui a cinco anos estaremos numa situação muito mais grave do que a que tivemos com a ocupação do território pelo tráfico.

Como vê a Comissão da Verdade, recém-sancionada pela presidente Dilma?

A comissão deveria ter sido instalada há tempos. É muito positivo que o Estado e a sociedade brasileira finalmente comecem a examinar o que aconteceu nos anos de terrorismo de Estado no Brasil.

É inadmissível que ainda tratemos o tema da repressão com tabu e em meio a tanta dificuldade de acessar informação. As famílias precisam saber o que aconteceu com seus filhos. Não olhar com transparência e sem medo é se recusar a aprender com o próprio erro. É um tumor que segue consumindo as forças da democracia brasileira.

Qual a sua opinião sobre a recente desocupação da reitoria da USP pela polícia?

Foi uma expressão do grau de tensão gerado por tudo aquilo que envolve a polícia.

Acho que houve excesso e faltou inteligência e mediação por parte das autoridades policiais. Isso não significa que não se deva refletir sobre maneiras de garantir a segurança na universidade. Mas não foi uma cena agradável ver a polícia entrar [na reitoria] com toda aquela força e aparato.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Quilombolas: ''sujeitos de direitos fundiários e histórico-culturais''. Entrevista especial com Rose Leine Bertaco Giacomini


“A regularização fundiária das terras quilombolas é a base para a proteção do patrimônio histórico e cultural dessas comunidades”, defende Rose Leine Bertaco Giacomini, em entrevista concedida à IHU On-Line. De acordo com a pesquisadora, atualmente mais de 1.076 comunidades encaminharam processos reivindicando a demarcação de terras que pertenceram a seus antepassados. “O processo demarcatório ainda é pouco expressivo comparado ao número de comunidades à espera da titulação de suas terras. A meu ver, é preciso rever o ordenamento jurídico e administrativo no que se refere à desintrução das áreas ocupadas pelos posseiros no interior do território reconhecido e delimitado às comunidades quilombolas, como as desapropriações das posses para a titulação definitiva das terras às comunidades de quilombos”, assinala.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Rose Leineexplica como acontece o processo de identificação e reconhecimento oficial das comunidades quilombolas no Brasil e enfatiza que, para elas, “a terra é pensada como propriedade comum ao grupo”. Segundo afirma, o direito à posse definitiva das terras quilombolas traz para as comunidades “um avanço histórico e político e representa a conquista do direito de exercer a cidadania”.

Rose Leine Bertaco Giacomini é mestre em Geografia, pela Unesp, e doutora em Geografia Humana, pela USP-FFLCH-SP, com a tese Conflito, identidade e territorialização. Estado e comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira de Iguape-SP.

Confira a entrevista. IHU On-Line – Desde quando e como os quilombos urbanos têm se organizado no Brasil? Qual é a atual situação social e econômica dessas comunidades? Rose Leine Bertaco Giacomini – Na verdade, o movimento quilombola iniciou com a organização do movimento urbano, em meados dos anos de 1980, por meio do Movimento Negro Unificado – MNU que apontou novas pautas de discussões relativas à questão da identidade negra e da etnia, adentrando a discussão sobre as formas de violência que atingiam a população negra. Desde então, o MNU travou uma batalha política pela ampliação dos direitos da população negra no Brasil e se juntou às comunidades rurais negras em busca de formar uma comissão para propor a Constituição Federal de 1988 um artigo em defesa da causa quilombola, principalmente para tentar resolver os inúmeros conflitos territoriais existentes nas comunidades negras rurais e para assegurar seus territórios. Dentre suas conquistas está o Artigo 68 da Constituição Federal, o qual reconhece o direito que as comunidades remanescentes de quilombos têm às terras que ocupam, assim como as obrigações do Estado em legalizar suas posses. Esse artigo deixa evidente a intenção de reparação histórica e de reconhecimento de valores simbólicos voltados ao restrito universo dos “remanescentes”, daqueles que foram ícones da resistência e escravidão. Também foram criados os artigos 215 e 216, dedicados à proteção da cultura negra, que determinam o tombamento dos “sítios arqueológicos” relativos a antigos quilombos. Desse modo, caracteriza a conversão dessas normas voltadas à reparação do passado em instrumento de construção do futuro.

Os movimentos negros no Brasil até então só haviam assumido o termo quilombo como acervo simbólico para suas lutas urbanas, sem aprofundar a história e dedicar maior atenção ao mundo rural. A Constituição Federal de 1988 reconhece os remanescentes das comunidades de quilombos como sujeitos de direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos a partir de sua identidade étnica. A principal reivindicação dessas comunidades negras tanto urbanas como rurais é uma reparação histórica de tudo que foi logrado no passado, principalmente de seus territórios, por parte do Estado brasileiro, reconhecimento histórico e cultural a partir de sua identidade étnica.

IHU On-Line – Quantas comunidades quilombolas existem no Brasil? Em que regiões do país há maior concentração dessas comunidades? Rose Leine Bertaco Giacomini – Esses dados podem ser obtidos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, órgão federal responsável pela regularização dessas comunidades em todos os estados brasileiros. Existe um total de 1.076 comunidades com processos abertos. Quanto às regiões que apresentam maiorconcentração de comunidades de quilombos, podem-se destacar o Nordeste (com maior concentração no Maranhão e na Bahia) e o Sudeste (com maior concentração em Minas Gerias e em São Paulo). A Fundação Cultural Palmaresapresenta mais de 2.000 processos abertos – esse órgão federal apenas emite uma certificação às comunidades que se autoidentificam como quilombolas. De 2004 a 2011 este órgão emitiu 1.711 certificados a essas comunidades. Mas o trabalho efetivo de reconhecimento e titulação é realizado pelo Incra e pelos órgãos estaduais responsáveis pela regularização de terras em parceria com ele, ou até mesmo por algumas instituições que também assumem essa atividade em parceria com o governo federal caso o estado não possua órgão público de regularização de terras.

IHU On-Line – Como os quilombolas são apresentados na historiografia brasileira? Percebe avanços nas abordagens mais recentes? Rose Leine Bertaco Giacomini – Hoje, as comunidades de quilombos são identificadas pela sua identidade étnica como sujeitos de direitos fundiários e históricos-culturais. De modo que o Artigo 68 apresenta uma inovação no plano do direito fundiário e também no imaginário social, da historiografia dos estudos antropológicos, históricos e sociológicos sobre a população camponesa, assim como no plano das políticas locais, estaduais e federais. São reconhecidas não mais como comunidades negras, mas como “comunidades remanescentes de quilombos” com direitos que foram conquistados e contemplados na redação da Constituição Federal de 1988. O Artigo 68 não apenas reconheceu o direito que as comunidades remanescentes de quilombos têm às terras que ocupam, mas também criou a categoria política e a sociológica.

Os remanescentes de quilombos são considerados os grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos de um determinado lugar, cuja identidade se define por uma referência histórica comum, construída a partir de vivencias e valores partilhados. Desse modo, eles constituíram grupos étnicos. O conceito de “quilombo” foi ressemantizado por estudiosos da questão quilombola, e a ideia de “quilombo”, representado pelo Quilombo dos Palmares, ficou no passado dos livros de história. Com relação à ampliação histórica do conceito de quilombo, ele foi alargado de forma a contemplar um campo mais amplo e diversificado das chamadas “comunidades rurais negras”, na qual incluem as comunidades que tiveram origem de fato nos antigos quilombos, ou compra de terras pelos negros libertos ou forros, da doação de terras pelos antigos senhores, de posse pacífica de terras abandonadas pelos escravos e terras doadas aos santos entre outras situações fundiárias.
IHU On-Line – Nos últimos anos, algumas áreas quilombolas foram demarcadas pelo governo. Qual é o significado e a importância de reconhecer essas comunidades? Rose Leine Bertaco Giacomini – Para as comunidades, o reconhecimento realizado pelo Estado como “remanescentes de quilombos” trouxe autoestima para a população negra que passou a ser identificada como quilombola. O direito à posse definitiva de suas terras traz um avanço histórico e político e representa a conquista do direito de exercer a cidadania, o acesso às políticas públicas direcionadas a essa população negra. Essas comunidades se tornaram símbolos de uma identidade, de uma cultura e de um modelo de luta e resistência negra, de modo que essas transformações na autopercepção estão associadas à forma como passam a ser percebidas pela sociedade em geral. Suas visões passaram a mudar, não representam mais aqueles que estavam presos a relações arcaicas de produção e reprodução social.

IHU On-Line – Os quilombolas, especialmente no Rio Grande do Sul, reivindicam terras que foram antigamente ocupadas por escravos, mas que hoje são ocupadas por agricultores. Como resolver esse impasse em relação à desapropriação da terra e a demarcação de novas terras quilombolas? Rose Leine Bertaco Giacomini – A legislação federal, através do Artigo 68, 215 e 216, dá o direito legal de posse definitiva das terras às comunidades remanescentes de quilombos comprovados pelos estudos por meio dos laudos antropológicos embasados na legislação em questão. Dessa forma, os estados, para desapropriar essas terras ocupadas pelos agricultores, sejam posseiros em terras devolutas ou sejam propriedades em área particular, usam de critérios estabelecidos pela legislação estadual e federal. Então, esse impasse depende de cada caso apresentado como também depende de uma regulamentação jurídica para cada laudo apresentado para a desapropriação das áreas dentro do território reconhecido como dos quilombos.
IHU On-Line – Há muitos conflitos territoriais entre quilombolas e agricultores por conta da disputa de terras? Rose Leine Bertaco Giacomini – Na verdade, as comunidades de quilombos se encontram num emaranhado de conflitos pela posse de seu território, que ora aparece em terras devolutas, ora em particular, constituindo diferentes situações jurídicas a serem solucionadas pelas agências governamentais. Os conflitos nos territórios quilombolas são constantes, sejam eles provocados pelos posseiros, grileiros, criadores de gado, agricultores, sejam pela ameaça de construção de hidroelétricas ou conflitos ambientais que surgem com a implantação de Unidade de Conservação, como os parques e reservas nas áreas quilombolas, ou ainda por investimentos imobiliários.

Esse processo de reconhecimento e titulação das terras quilombolas encontra muitos obstáculos impostos por setores hegemônicos da sociedade que disputam essas terras para a expansão de suas atividades produtivas e/ou especulativas. Por isso o reconhecimento dessas comunidades como “remanescentes de quilombos” é essencial para garantir o seu direito de propriedade, de maneira que é indispensável documentar essa identificação, em virtude de eventuais disputas judiciais pela posse das terras, uma vez que a regularização fundiária das terras quilombolas é a base para a proteção do patrimônio histórico e cultural dessas comunidades. O laudo antropológico é documento oficial que reconhece uma comunidade quilombola e a demarcação das terras é construída junto com os membros das comunidades, sempre respeitando os dados históricos e ocupação das terras.

IHU On-Line – Que relação os quilombolas têm com a terra? Rose Leine Bertaco Giacomini – As comunidades de quilombos têm um forte vínculo com o território que se apresenta, e essa é uma característica essencial para a sobrevivência física das famílias. O território é indispensável para a afirmação da identidade de seus moradores, atribuídos às relações materiais e simbólicas, ou seja, à memória, à linguagem, às relações de parentesco e vizinhança, organização social e política, ou seja, o território/terra é essencial para a manutenção e continuidade de suas tradições. A terra é pensada não como propriedade individual, mas como propriedade comum ao grupo. Nesse sentido o regime de uso comum permitiu a consolidação do território étnico representando o elemento fundamental da identidade cultural e da conexão social para requerer a propriedade definitiva de suas terras.
IHU On-Line – O deputado Valdir Colatto (PMDB/SC) alega que vários grupos estão se autointitulando quilombola e reivindicando terras que foram de seus antepassados. Para ele, essa situação está gerando uma insegurança jurídica. Como é possível definir quais são as comunidades quilombolas e assegurar as terras que foram de seus antepassados? Rose Leine Bertaco Giacomini – O processo de identificação e reconhecimento oficial de uma comunidade negra como remanescente de quilombo não implica simples registro de realidades dadas e prontas, mas representa um processo de produção técnico-ciêntifica, sendo necessário produzir laudos antropológicos que deem sustentação às demandas dessas comunidades, traduzindo em uma linguagem compatível com a interpretação jurídica que são realizados por profissionais (antropólogos, geógrafos, cartógrafos entre outros), conforme o Relatório Técnico de Identificação e Demarcação – RTID e algumas leis estaduais, que é o caso de São Paulo, onde foi criado oRelatório Técnico Científico – RTC.

Os laços dessas comunidades precisam ser reproduzidos e resgatados da memória coletiva através de recriação de elementos dessa memória e de traços culturais, para que os mediadores e os próprios órgãos governamentais possam reconhecê-los. Destacam-se a produção dos limites e fronteiras, que estabelece até onde vão os domínios territoriais, que já foram no passado ou deveriam ir ao futuro; a produção de uma memória coletiva, construída a partir da possível dispersão das memórias familiares, dos laços genealógicos, das imagens de si e de outros agrupamentos; a produção de novas redes de relações, esses agrupamentos precisam de argumentações e provas, trocas e aprendizados, o que acaba por determinar as extensões de suas lutas anteriores por outros campos de batalha, outras estratégias e alianças; a produção de novos sujeitos políticos, na medida em que passam ocupar uma posição nova frente aos panoramas locais e regionais.

Esses grupos surgem como interlocutores dos órgãos oficiais, alterando suas formas de intervenção, como é o caso do reconhecimento da posse coletiva da terra; a produção de uma hermenêutica jurídica: os direitos dos quilombolas têm levado ao reconhecimento da necessidade de ampliação e aprofundamento do diálogo entre juristas e cientistas sociais voltados ao trabalho de decodificação e validação desses variados ordenamentos jurídicos. O reconhecimento oficial de uma comunidade quilombola é sempre embasado na legislação criada pelos Artigos 68, 215, 216, Decretos 4.887/2003, 6.040/2007e IN 49/2008.
IHU On-Line – Como vê a atuação do governo federal em relação à demarcação das terras quilombolas no Brasil? Que políticas públicas são necessárias para tratar a questão? Rose Leine Bertaco Giacomini – O governo federal assumiu o processo de reconhecimento e demarcação das terras quilombolas efetivamente a partir do decreto federal 4.887 de 2003, o qual foi regulamentado pela Instrução Normativa n. 16 de 2004 e IN n. 49 de 2008, que regulamenta o procedimento para a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes de quilombos. O processo demarcatório ainda é pouco expressivo comparado ao número de comunidades à espera da titulação de suas terras. A meu ver, é preciso rever o ordenamento jurídico e administrativo no que se refere à desintrução das áreas ocupadas pelos posseiros no interior do território reconhecido e delimitado às comunidades quilombolas, como as desapropriações das posses para a titulação definitiva das terras às comunidades de quilombos. Essas duas questões apresentadas, a jurídica e administrativa, são lentas e posso dizer, pela minha longa experiência atuando na elaboração de laudos técnicos no estado de São Paulo, que essa demora dificulta o andamento do processo da regularização das terras quilombolas.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Grécia, Itália e os sagazes sarcasmos de Marx sobre os ''governos técnicos''


Se retornasse ao debate jornalístico, analisando o caráter cíclico e estrutural das crises capitalistas, Marxseria lido com particular interesse na Grécia e na Itália por um motivo especial: a reaparição do “governo técnico”. Para ele, o mínimo que se pode dizer desse tipo de governo é que representa a impotência do poder político em um momento de transição. Os governos já não discutem as diretrizes econômicas, mas, ao contrário, elas é que são as parteiras dos governos. O comentário é de Marcello Musto, professor de Ciência Política na Universidade York, de Toronto, e publicado por Carta Maior, 14-11-2011.

Eis o artigo.

Se retornasse ao debate jornalístico no mundo de hoje, analisando o caráter cíclico e estrutural das crises capitalistas, Marx poderia ser lido com particular interesse hoje na Grécia e na Itália por um motivo especial: a reaparição do “governo técnico”. Na qualidade de articulista do New York Daily Tribune, um dos diários de maior circulação de seu tempo,Marx observou os acontecimentos político-institucionais que levaram ao nascimento de um dos primeiros “governos técnicos” da história, em 1852, na Inglaterra: o gabinete Aberdeen (dezembro de 1852/janeiro de 1855).

A análise de Marx é notável por sua sagacidade e sarcasmo. Enquanto o Times celebrava o acontecimento como um sinal de ingresso “no milênio político, em uma época na qual o espírito de partido está destinado a desaparecer e no qual somente o gênio, a experiência, o trabalho e o patriotismo darão direito a acesso aos cargos públicos”, e pedia para esse governo o apoio dos “homens de todas as tendências”, porque “seus princípios exigem o consenso e o apoio universais”; enquanto os editorialistas do jornal diziam isso, Marx ridicularizava a situação inglesa no artigo “Um governo decrépito. Perspectivas do gabinete de coalizão”, publicado em janeiro de 1853.

O que o Times considerava tão moderno e bem articulado, era apresentado por Marx como uma farsa. Quando a imprensa de Londres anunciou “um ministério composto por homens novos”, Marxdeclarou que “o mundo ficará um tanto estupefato ao saber que a nova era da história está a ponto de ser inaugurada por cansados e decrépitos octogenários (...), burocratas que participaram de praticamente todos os governos desde o final do século passado, frequentadores assíduos de gabinetes duplamente mortos, por idade e por usura, e só mantidos vivos por artifício”.

Para além do juízo pessoal estava em questão, é claro, o de natureza política. Marx se pergunta: “quando nos promete a desaparição total das lutas entre os partidos, inclusive o desaparecimento dos próprios partidos, o que o Times quer dizer?” A interrogação é, infelizmente, de estrita atualidade no mundo de hoje, no qual o domínio do capital sobre o trabalho voltou a tornar-se tão selvagem como era em meados do século XIX.

A separação entre o “econômico” e o “político”, que diferencia o capitalismo de modos de produção que o precederam, chegou hoje ao seu ápice. A economia não só domina a política, fixando agendas e decisões, como retirou competências e atribuições que eram próprias desta, privando-a do controle democrático a tal ponto que uma mudança de governo já não altera as diretrizes da política econômica e social.

Nos últimos 30 anos, inexoravelmente, o poder de decisão foi sendo transferido da esfera política para a econômica, transformando possíveis decisões políticas em incontestáveis imperativos econômicos que, sob a máscara ideológica do “apolítico”, dissimulam, ao contrário, uma orientação claramente política e de conteúdo absolutamente reacionário.

O deslocamento de uma parte da esfera política para a economia, como âmbito separável e inalterável, a passagem do poder dos parlamentos (já suficientemente esvaziados de valor representativo pelos sistemas eleitorais e majoritários e pela revisão autoritária da relação entre Poder Executivo e Poder Legislativo) para os mercados e suas instituições e oligarquias constitui, em nossa época, o maior e mais grave obstáculo interposto no caminho da democracia. As avaliações de Standard & Poor’s, os sinais vindos de Wall Street – esses enormes fetiches da sociedade contemporânea – valem muito mais do que a vontade popular.

No melhor dos casos, o poder político pode intervir na economia (as classes dominantes precisam disso, inclusive, para mitigar as destruições geradas pela anarquia do capitalismo e a violência de suas crises), mas sem que seja possível discutir as regras dessa intervenção e muito menos as opções de fundo.

Exemplos deslumbrantes disso são os acontecimentos dos últimos dias na Grécia e na Itália. Por trás da impostura da noção de um “governo técnico” – ou, como se dizia nos tempos de Marx, do “governo de todos os talentos” – esconde-se a suspensão da política (referendo e eleições estão excluídos), que deve ceder em tudo para a economia. No artigo “Operações de governo” (abril de 1853), Marxafirmou que “o mínimo que se pode dizer do governo de coalizão (“técnico”) é que ele representa a impotência do poder (político) em um momento de transição”. Os governos já não discutem as diretrizes econômicas, mas, ao contrário, as diretrizes econômicas é que são as parteiras dos governos.

No caso da Itália, a lista de seus pontos programáticos ficou clara em uma carta (que deveria ter sido secreta) dirigida pelo Banco Central europeu ao governo Berlusconi. Para “recuperar a confiança” dos mercados, é preciso avançar pela via das “reformas estruturais” – expressão que se tornou sinônimo de dano social – ou seja, redução de salários, revisão de direitos trabalhistas em matéria de contratações e demissões, aumento da idade de aposentadoria e privatizações em grande escala. Os novos “governos técnicos” encabeçados por homens crescidos sob o teto de algumas das principais instituições responsáveis pela crise (veja-se os currículos de Papademos e de Monti) seguirão esse caminho. Nem é preciso dizer, pelo “bem do país” e pelo “futuro das gerações vindouras”, é claro. Para o paredão com qualquer voz dissonante desse coro.

Mas se a esquerda não quer desaparecer tem que voltar a saber interpretar as verdadeiras causas da crise em curso e ter a coragem de propor e experimentar as respostas radicais exigidas para a sua superação.